quinta-feira, 31 de maio de 2012

A incerteza e a ciência do século XXI


Certo dia me deparei com um texto de Affonso Romano de Sant’ Anna intitulado Certas incertezas (que você pode encontrar aqui). Ele chegou até mim através de um curso de Filosofia da Ciência, oferecido pelo Instituto de Biofísica (IBCCF) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, local onde desenvolvo meu projeto de mestrado. Confesso que me fiz parte do corpo de estudantes que frequenta tal curso muito mais por amor e apreço a literatura, a filosofia e a abstração, do que por qualquer outro motivo. No entanto, considero como prerrogativa básica que, na busca por desenvolver uma ciência pouco enviesada e mais próxima da realidade, o cientista seja, antes de tudo, um pensador. Dessa forma, julgo extremamente positivo quando decidimos deixar, pelo menos por algum tempo, as bancadas de nossos laboratórios a fim de pensarmos as questões do mundo a partir de uma perspectiva filosófica.

Em seu texto, Sant’ Anna comenta como a ciência do século XX se estabeleceu a partir de um novo paradigma, em suas palavras, “o paradigma da incerteza, do acaso, da probabilidade e da relatividade”. Para este autor, essa nova forma de se pensar os fenômenos naturais, nos levou a conclusão de que, na realidade, não existem verdades absolutas; tudo seria aparência e interpretação, e estaríamos vivendo no “império do significante vazio”. 


Werner Heisenberg (1901 - 1976), físico alemão ganhador do Prêmio Nobel de Física. Postulou, em 1927, o Princípio da Incerteza afirmando ser impossível determinar, com precisão absoluta, a posição ou o momento (velocidade) de um elétron.


Gostaria de argumentar aqui, brevemente, o porque discordo das conclusões de Sant’Anna dissertando sobre o quanto, na verdade, penso que a admissão da incerteza presta um favor a ciência.

A teoria da relatividade de Albert Einstein, a descoberta da mecânica quântica e do Princípio da incerteza de Heisenberg trouxeram ao pensamento do século XX a noção de que os fenômenos naturais não são estáticos, previsíveis e unicamente governados por leis universais. Entretanto, isso não significa dizer que, em virtude de tais postulados, nada mais faça sentido. Heisenberg defendeu a impossibilidade de se prever com precisão e simultaneamente a velocidade e a posição de um elétron, mas fez isso baseando-se no método científico, que é racional e cartesiano.

Ao afirmar que os meios empregados para medir o comportamento do elétron terminavam por influenciar seu comportamento, Heisenberg não descredibilizou a experimentação científica baseada no método, apenas valeu-se de um pressuposto básico e insubstituível deste; o de que devemos sempre levar em consideração a margem de erro de nossas inferências. Como muito bem abordado pelo astrofísico estadunidense Carl Sagan em seu livro O Mundo Assombrado pelos demônios, a  margem de erro é uma auto-avaliação visível e disseminada da confiabilidade de nosso conhecimento. E o sucesso da ciência está justamente neste mecanismo embutido de correção de erros. O nosso mecanismo de detecção da verdade, o método científico, deve ser refinado a cada dia, a cada nova geração de cientistas. Somente dessa forma é que nos aproximamos cada vez mais da verdade. E é justamente por isso, por a ciência se basear em pressupostos testáveis e confiáveis e por levar em consideração a probabilidade do erro, que foi possível a Heisenberg certificar a incerteza.

Uma vez que deparamo-nos com o fato de que os fenômenos naturais estudados pela ciência nem sempre respeitam a racionalidade e as teorias científicas, fica evidente, a meu ver, que uma visão aberta à novas idéias, combinada com o mais rigoroso exame cético de todas elas, deve ser o pensamento científico norteador do século XXI. O cientista que empregar tal forma de pensar certamente contribuirá para uma ciência mais abrangente, a medida que nos aproximamos cada vez mais da realidade.




sexta-feira, 18 de maio de 2012

Frustração


Por razões com as quais não concordo, porém respeito, o texto "A incerteza e a ciência do século XXI" foi tirado do ar e permanecerá assim por algumas semanas (já voltou!!!). Peço desculpas a você amigo próximo, a quem recomendei esse blog, e também para você amigo não tão próximo, navegador da web que chegou até ele a partir de outras fontes, por precisar fazer isso.

Porém, na tentativa de não desapontá-lo tanto assim, publico hoje aqui um texto que escrevi há alguns meses, e que já foi publicado no blog comunitário do Laboratório de Biologia Molecular Ambiental (BioMA), do Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, local onde desenvolvo meu projeto de mestrado. Se você quiser dar uma checada lá de vez em quando posso quase garantir que não vai se arrepender.

Fique agora com o texto sobre vegetarianismo e boa leitura!



COMER OU NÃO COMER CARNE?

A visão de um biólogo sobre uma das várias facetas do vegetarianismo.   

Nos últimos tempos tenho pensado muito sobre vegetarianismo. Uma de minhas melhores amigas, com quem, via de regra, tenho vários brainstorms construtivos, parou de comer carne. Quando nossas vidas nos permitem, sempre discutimos uma coisa ou outra sobre o assunto.





O último material analisado foi uma palestra de Gary Yourofsky, um estadunidense ativista pelos direitos dos animais (disponível no YouTube; http://www.youtube.com/watch?v=8bH-doHSY_o).  Em uma hora e dez minutos de palestra, Yourofsky discursa sobre os vários aspectos que o levam a acreditar fielmente que comer carne é um crime; primeiro contra os outros animais, e segundo, contra nós mesmos, uma vez que, na opinião do palestrante, comer carne e seus derivados (queijo, leite e ovos) faz mal para a saúde humana.

Dos vários pontos levantados por Yourofsky, não podia ter deixado de me incomodar e chamar minha atenção, como bióloga que sou, a declaração de que os seres humanos são animais 100% herbívoros. De acordo com Yourofsky, o comprimento de nossos intestinos é cerca de 7 a 13 vezes o comprimento de nosso tronco, o mesmo padrão de comprimento que é encontrado em outros herbívoros. Temos longos intestinos. Por outro lado, o intestino dos “carnívoros verdadeiros” como hienas, tigres e leões, seria apenas de 3 a 6 vezes o tamanho de seus troncos. Isso seria uma evidência forte de que não nascemos para comer carne.

Mas será que tal evidência sustenta tal afirmação?

Com esta questão rondando meus pensamentos por alguns dias, resolvi ir atrás de trabalhos científicos que abordassem o assunto; procurava eu por artigos que tratassem da evolução do homem e sua relação, ou não, com o hábito de comer carne. Eis que encontro um trabalho de 2003, publicado no The Journal of Nutrition tratando de tal tema. A autora, Katherine Milton discursa sobre as diferenças do tamanho dos intestinos de humanos e dos grandes símios (em inglês, great apes, os orangotangos, gorilas e chimpanzés), que são os parentes vivos mais próximos do homem moderno atual e tem uma dieta marcadamente herbívora. De acordo com ela, em humanos, mais da metade (56%) do volume total do intestino é constituída pelo chamado pequeno intestino enquanto que nos símios a parte maior seria o cólon (45%). Estas diferenças evidenciariam especializações distintas no que diz respeito à dieta: uma maior dominância de cólon, como presente nos símios, reflete uma dieta de baixa qualidade nutricional, constituída basicamente por plantas. Por outro lado, animais com um organismo dominado pelo pequeno intestino, como os seres humanos, que é o principal local de digestão e absorção de alimentos, sugere uma adaptação a alimentos de alta qualidade nutricional, como carnes.

Dá pra ficar com a pulga atrás da orelha, certo? Mas não vamos tomar nenhuma decisão precipitada, voltemos ao vídeo.

Logo depois de comentar sobre o intestino dos humanos, Yourofsky sugere um desafio: segundo ele, se somos realmente carnívoros, deveríamos ser capazes de caçar (isso mesmo, caçar) um esquilo pelas ruas, matá-lo e comê-lo com nossas próprias mãos, sem o uso de nenhuma ferramenta adicional. Depois dessa afirmação fiquei ainda mais desconfortável com o vídeo e pensei: ora, mas se temos um cérebro desse tamanho não deveríamos usá-lo para alguma coisa? Não poderia nossa inteligência substituir a destreza de garras e dentes imensos pela habilidade de construir ferramentas e armas para a caça? Qual foi minha felicidade quando, com o artigo de Katherine Milton, foi exatamente uma explicação similar a esta o que encontrei: segundo Milton, a primeira ferramenta de pedra em associação com um hominídeo é encontrada com os restos fossilizados do Homo habilis, um dos primeiros pertencentes às espécies do gênero Homo. Esta associação indica que, pelo menos a partir de então, a tecnologia da ferramenta de pedra começa a desempenhar um importante papel na vida desses hominídeos facilitando a alimentação por carne. Esta mudança de enfoque na dieta, empurrada fortemente pelo aprendizado do uso da tecnologia, foi gradualmente refletindo-se no tamanho do cérebro humano (gerando um aumento substancial) e no formato do intestino (aumentando a proporção do pequeno intestino). Sem o rotineiro acesso a carne e seus derivados, é improvável que os hominídeos em evolução chegassem a atingir um tamanho de cérebro tão notoriamente grande e complexo enquanto ao mesmo tempo evoluíam como grandes e ativos primatas sociais.

E agora? Fica a pergunta: será que todas as pesquisas científicas (que são muitas) relacionando o hábito de comer carne à evolução do homem estão enganadas? Sim, essa pode ser sim uma resposta. Mas pensemos por um outro lado: será que nossa vontade de parar o abuso aos animais nas fazendas de criação e abatedouros não está nos levando a tirar conclusões que são biologicamente equivocadas para que consigamos ganhar mais partidários para nossa causa?

Particularmente, também concordo que o modo de produção de carne atual talvez seja reflexo de uma sociedade doente, onde compra e venda são mais importantes e passam por cima dos direitos e do bem-estar animal. Mas será que comer carne não faz realmente parte dos hábitos do bicho homem? Evidências evolutivas mostram que faz parte. Por favor, não confundamos alhos com bugalhos (ou comedores de carnes, com assassinos cruéis).

Referência:
Katharine Milton. 2006. The Critical Role Played by Animal Source Foods in Human (Homo) Evolution. The Journal of Nutrition. vol133, no 11 (38865 –  38925).