sexta-feira, 24 de junho de 2016

Breve comentário sobre as ações humanas

Isso aqui é apenas uma nota de desabafo. Faz tempo que não escrevo ou apareço por aqui, e isso me pesa. Mas é momento de concentração para terminar o doutorado. 

No entanto, no caminho hoje de manhã para a UFRJ li uma passagem de Ensaios Céticos de Bertrand Russell e tive o sobressalto e a vontade de vir compartilhar. Essa passagem não é somente a perspectiva de um homem cético sobre a cegueira humana no momento em que ele vivia. É também um relato histórico do século XX. E lido agora no século XXI, é impossível não sentir um aperto no peito. A histórica se repete? Coloco aqui o ponto de interrogação na esperança da dúvida.
Como cientista em formação e comunicadora, fico a pensar se nós - cientistas, comunicadores e historiadores - falhamos ao comunicar. Seriam as guinadas à intolerância da humanindade nesse momento decorrentes da ignorância científica e histórica? Ou não; a cruel e indigesta realidade seria o fato de que por mais que sejamos a população humana mais educada de todas as eras humanas, nossa paixão por crenças irracionais fala mais alto.

O século XX foi marcado por preconceito e totalitarismo, inclusive na ciência. A eugenia foi estudada e defendida por cientistas europeus recorrentemente nesse século. No século XXI, no entanto, ficamos menos ignorantes perante a nossa própria biologia; uma das maiores conquistas deste século foi o sequenciamento do genoma humano e a constatação definitiva de que não existem raças humanas: somos todos humanos com as mesmas potencialidades.


Nesse cenário, como é que ainda há espaço para Bolsonaros e Donald Trumps? 

Quando acertar suas contas com a história, o século XXI não poderá atribuir a sua intolerância à ignorância.

A história se repete. (?) Vamos ler Russell.

Bretrand Russell, filósofo e matemático pacifista, escreveu essa passagem no período entre guerras no século XX (entre a Primeira e a Segunda Guerra mundial). Mal sabia ele o que estava por vir mas décadas que se seguiram. 
O quanto podem ou devem as ações humanas ser irracionais?
… Shakespere reuniu “o lunático, o amante e o poeta”, todos com imaginação substancial. O problema é ficar com o amante e o poeta, sem o lunático. Darei um exemplo. Em 1919, vi As mulheres de Tróia encenada no Old Vic. Existe uma cena insuportavelmente patética, na qual Astianax é condenado à morte pelos gregos por medo de que se torne um segundo Heitor. Quase todos choravam no teatro e a platéia achou a crueldade dos gregos, na peça, difícil de acreditar. No entanto, essas mesmas pessoas que choravam estavam, naquele momento, praticando a mesma crueldade em uma escala que a imaginação de Eurípides jamais poderia contemplar. Haviam acabado de votar (a maioria delas) em um governo que prolongava o bloqueio à Alemanha após o armistício e impunha o bloqueio à Rússia. Sabia-se que esses bloqueios causariam a morte de um grande número de crianças, mas desejavam diminuir a população dos países inimigos: as crianças, como Astianax, poderiam crescer e imitar seus pais. O poeta Eurípides despertara o amante na imaginação da platéia; mas o amante e o poeta foram esquecidos na porta do teatro, e o lunático (na forma de maníaco homicida) controlava as ações políticas desses homens e mulheres que se acreditavam bons e virtuosos. É possível preservar o amante e o poeta sem conservar o lunático? Em cada um de nós, os três existem em graus variados. Estariam eles tão ligados que quando um fosse mantido sob controle os outros pereceriam? Não acredito nisso. Creio que em cada um de nós existe uma certa energia que deve encontrar expressão em ações não inspiradas pela razão, mas que pode exprimir-se na arte, no amor apaixonado, ou no ódio apaixonado, de acordo com as circunstâncias. A respeitabilidade, a regularidade e a rotina – as disciplinas de ferro fundido na sociedade industrial moderna – atrofiaram o impulso artístico e aprisionaram o amor de tal forma que ele não pode mais ser generoso, livre e criativo, mas sim sufocante e furtivo. O controle foi aplicado a questões que deveriam ser livres, enquanto a inveja, a crueldade e o ódio disseminaram-se amplamente com a bênção de quase todos os bispos. Nosso sistema instintivo consiste de duas partes – a que tende a impulsionar nossa vida e a de nossa descendência, e aquela propensa a se opor às vidas de nossos supostos rivais. A primeira inclui a alegria de viver, o amor, e a arte, que são, do ponto de vista psicológico, uma derivação do amor. A segunda inclui competição, patriotismo e guerra. A moralidade convencional faz tudo para suprimir a primeira e encorajar a segunda. A verdadeira moralidade procederia exatamente ao contrário. Nossas relações com aqueles que amamos podem ser entregues, com segurança, ao instinto; e nossa relação com aqueles que odiamos deve ser posta sob o domínio da razão. No mundo moderno, aqueles a quem efetivamente odiamos são grupos distantes, em especial nações estrangeiras. Nós os concebemos de forma abstrata e nos enganamos ao crer que os atos, que são na verdade encarnações do ódio, são praticados por amor à justiça ou por algum motivo nobre. Apenas uma grande dose de ceticismo pode rasgar os véus que escondem de nós essa verdade. Tendo alcançado isso, podemos começar a construir uma nova moralidade, que não esteja baseada na inveja e na restrição, mas no desejo de uma vida completa, e a perceber que outros seres humanos são uma ajuda e não um impedimento, depois que a loucura da inveja for curada. Isso não é uma esperança utópica; foi em parte realizada na Inglaterra elisabetana. Poderia ser alcançada amanhã, se os homens aprendessem a perseguir sua própria felicidade e não o infortúnio dos outros. Isso não é uma moralidade austera impossível; no entanto, sua adoção faria da terra um paraíso.” 

                                                     Ensaios Céticos - Bertrand Russell